Cultura e expressão. A decolonialidade na língua, nos saberes e fazeres das crianças pomeranas, manauaras e de terreiros

A decolonialidade na língua, nos saberes e fazeres das crianças pomeranas1, manauaras2 e de terreiros3

Este texto refere-se a três pesquisas de doutorado sendo uma finalizada e duas em andamento, de pesquisadoras vinculadas ao Grupo de Estudos e Pesquisa em Diferenciação Sóciocultural (GEPEDISC) – Culturas Infantis, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), São Paulo/Brasil. Tais pesquisas buscam refletir sobre a categoria de infância universal constituída pelo discurso da modernidade assentada em uma perspectiva homogeneizadora, genérica e abstrata de criança, basilar na sociedade brasileira colonialista, capitalista, cisheteropatriarcal, urbanocêntrica, de idioma português.

Neste momento singular da história, tal situação tem ficado cada vez mais evidente, em função da pandemia causada pelo novo coronavírus (Sars-cov-2), que têm colocado em evidência não só as crianças foco deste texto, mas uma pluralidade de infâncias outras que tiveram suas vidas afetadas na/pela história.

Na contramão desta sociedade que ainda mantém a colonialidade do poder, saber e ser, e aprofunda desigualdades, essas pesquisas estão alicerçadas em uma perspectiva intercultural crítica e decolonial que buscam a partir dessas crianças, trazer suas línguas maternas, saberes, modos distintos de vida, ser, estar e viver dando “um giro à uninacionalidade” (WALSH, 2019), a monoculturalidade e ao monolinguismo. A colonialidade deixou marcas profundas, mas não apagou a ancestralidade dessas crianças.

Menino pomerano brincalhão em Santa Maria de Jetiba-ES/Brasil

As crianças pomeranas de que trata a pesquisa “Migrações, Infâncias e Educação Infantil” (SILLER 2011), vivem em áreas rurais do Município de Santa Maria de Jetibá-ES/Brasil. A pesquisa aponta que a maioria dessas crianças são bilingues e chegam nos espaços da Educação Infantil falando a sua língua materna pomerana e a língua portuguesa. Mas, têm aquelas que são monolingues com uso somente da sua língua materna.

Menina brincando no quintal de sua casa em Santa Maria de Jetibá-ES/Brasil

A língua materna pomerana é uma das dimensões que constitui a vida das crianças pomeranas e demarca sua identidade cultural. Aprendida primeiro com suas famílias, e, posteriormente, com seu grupo etnolinguístico, a língua pomerana é a mais utilizada pelas crianças e por todos os membros da casa. Por meio da fala, com uso de sua língua materna pomerana e de suas ações, essas crianças, na pluralidade das culturas infantis, se revelam quem são. No entanto, contraditoriamente, elas enfrentam ainda hoje a barreira da língua, apesar de políticas delineadas nas últimas décadas.

Maher (2007), enfatiza o cuidado necessário ao planejamento de programas educacionais pautados no respeito às especificidades linguístico-culturais de grupos minoritários. Para a autora, não basta as minorias étnicas brasileiras terem consciência de seus direitos constitucionais, para que o cenário de opressão linguístico-cultural em que vivem, seja na prática transformado.

O fortalecimento político dos grupos sociais destituídos de poder, o estabelecimento de legislações a eles favoráveis, junto com a educação em seu entorno para que aprendam a respeitar e a conviver com diferentes manifestações linguísticas e culturais (MAHER, 2007), são ações que devemos perseguir em busca de uma outra sociedade possível.

Garoto da Pomerânia acompanhando seus pais no trabalho com agricultura em Santa Maria de Jetiba-ES/Brasil Fonte: arquivo do pesquisador

As crianças manauaras que trata a pesquisa “Mães manauaras e a educação das crianças pequenininhas: pluralidades históricas e resistência na cidade da floresta” (SILVA, 2021), demonstra que na Amazônia brasileira o processo de colonização impõe a hegemonia da língua portuguesa desde a invasão. A língua do colonizador passou a ter liderança no domínio comunicativo dos povos indígenas, os primeiros habitantes. As alterações nos modos de vida e transformações nas práticas culturais tem repercussões direta no vocabulário e nas formas de expressar o cotidiano. O repertório vocabular é alterado, porque a vida não é mais a mesma quando os saberes ancestrais são desvalorizados.

Em se tratando da subalternização dos povos originários, entendemos que quando lhes são retirados o direito de ser, a língua não comporta mais as mudanças decorrentes da violação de costumes, crenças e valores. Os efeitos da interferência da cultura de sociedades de consumo são devastadores em culturas como as indígenas.

Quanto as crianças indígenas cujas famílias optam por viverem em ambiente urbano, na prática observamos que há uma diferenciação com relação as crianças que vivem em aldeias. As que moram na cidade ficam à margem dos direitos, tanto desprotegidas pelas legislações que garantem os direitos dos povos indígenas, quanto dos direitos das crianças não indígenas, pois não se enquadram no critério de homogeneidade exigido pelo Estado. Assim, as crianças indígenas que vivem em ambientes urbanos, como as que moram na cidade de Manaus, estado do Amazonas, Região Norte do Brasil, tem seus direitos ignorados sobretudo com relação à língua materna e a cultura do seu povo. A escola mantém a imposição da língua portuguesa desconsiderando as línguas dos povos originários, mesmo numa região com expressiva população indígena, como a Região Amazônica.

Meninos e Meninas manauras em um passeio de barco pelo Rio Negro. Fonte: Coleção do fotográfo Wander Luís

A pesquisa em andamento, traz as crianças de comunidades de terreiro, considerados como espaços-tempos que praticam as diferentes religiões constituídas a partir da articulação entre elementos indígenas, brasileiros e as vivências da população afrodiaspórica escravizada no período colonial. Durante a diáspora negra, foram três os principais e maiores grupos étnicos que vieram para o Brasil: os bantos, os iorubás e os Fon-ewés. Cada grupo falava as mais diversas línguas, possuíam diferentes culturas, costumes e divindades e quando chegaram ao Brasil, se articularam e fundaram novas religiões.

Menina em ritual de iniciação pública em uma comunidade Candomblé- São Paulo/Brasil

Esses espaços, desde sua origem, sempre estiveram repletos de crianças que participam de seus rituais, da hierarquia dos cultos e cargos, nas sucessões e lideranças das comunidades. Não há uma barreira que separe adultos e crianças nas comunidades de terreiro. Tais práticas consideradas espaços educativos por meio de suas danças, rezas, comidas, folhas, gestos e segredos oferecem vasto repertório de referências afrodiaspóricas, que conduz, organiza e mantém a comunicação de crianças, jovens e adultos.

A convivência cotidiana é algo fundamental para o aprendizado das línguas africanas em uma comunidade de terreiro. Diferentemente dos ambientes educacionais formais, considerados espaços legítimos para aquisição de conhecimento, as crianças que frequentam práticas de matriz afrodiaspórica falam muitas palavras de línguas africanas. A língua presente nesses espaços não se restringiu a seus muros, tornando-se um elemento fundamental na preservação das casas de axé4 (LIMA, 2021).

Considerações Finais
A perspectiva decolonial adotada nessas três pesquisas, possibilitou desvelar as relações hierárquicas de poder, de saber e de ser, construídas no decorrer do processo de colonização, que resvalam de alguma forma, na situação que observamos na atualidade como a permanência da língua portuguesa e a invisibilização das 274 línguas indígenas presentes no Brasil, da língua das crianças pomeranas e das crianças de terreiro. As pesquisas revelam o extermínio linguístico e cultural em um país racializado, que além de não aceitar sua condição pluriétnica, ignora a diversidade linguística da população, cultuando a manutenção das desigualdades.

Frente a esses contextos, fica o desafio de construirmos desde a educação infantil, alternativas para dar visibilidade às infâncias plurais, com suas diferenças étnicas, linguísticas, culturais, territoriais, de classe e gênero. Nessa direção, defendemos uma educação infantil decolonial pensada e construída a partir das condições das crianças colonizadas pela modernidade ocidental.

Mariana Semião de Lima marisemi@hotmail.com
Rosali Rauta Siller rauta13@gmail.com
Vanderlete Pereira da Silva vanderletesilva@yahoo.com.br

Notas
1. Meninos e meninas filhos de imigrantes e de origem pomerana
que moram em Santa Maria de Jetibá-ES/Brasil
2. Meninos e meninas que moram na cidade de Manaus-AM/Brasil
3. Meninos e meninas cujas famílias estão ligadas a um
casa tradicional de origem africana, chamada de casa de terreiro.
ligados a comunidades religiosas de origem africana por
laços de parentesco ou de iniciação.
4. Axé pode significar a casa de Candomblé em todas as suas
plenitude.

REFERÊNCIAS

LIMA, Mariana S. Religiões de matriz africana e memória ancestral: uma entrevista com Mãe Dango. In: OLIVEIRA JUNIOR, W. M.; LUZ, Renata S. da. Casa dos saberes ancestrais diálogos com sabedorias africanas e afro-americanas. Campinas,
SP: BCCL/UNICAMP, p. 288 – 305, 2021 [recurso eletrônico]

MAHER, Terezinha. Do casulo ao movimento: a suspensão das certezas na educação bilíngue e intercultural. In: S. M. Bortoni-Ricardo; CAVALCANTI, M. C. (Orgs.). Transculturalidade, linguagem e educação. Campinas: Mercado de Letras, 2007. p. 67-96.

SILLER, Rosali Rauta. Infância, Educação Infantil, Migrações. 2011. 261p. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011.

SILVA, Vanderlete Pereira da. Mães manauaras e a educação das crianças pequenininhas: pluralidades históricas e resistência na cidade da floresta. 2021. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2021.

WALSH, Catherine. Interculturalidade crítica e educação intercultural, Exposição apresentada no Seminario “Interculturalidad y Educación Intercultural”, organizado pelo Instituto Internacional de Integración del Convenio Andrés Bello, La Paz, 9-11 de marzo de 2009.

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