Historia da educação. Paulo Freire e as infâncias

Crédito: Instituto Paulo Freire (SP)

É uma coisa boa, Natercinha, que a gente nunca deixe de ser menino. Os homens atrapalham as coisas, complicam tudo. Não sei se você vai entender isso que vou lhe dizer. Mamãe e papai lhe explicam melhor. Cresça, mas nunca deixe morrer em você a Natercinha de hoje, que começa a descobrir o mundo, cheia de curiosidade. Se os homens não deixassem morrer dentro deles o menino que eles foram, se compreenderiam melhor.

(Carta de Paulo Freire, escrita em 1967 durante o exílio no Chile, à sua prima Nathercia, na época com 9 anos de idade.
In: LACERDA, 2016, p. 51)

O “menino conectivo”
Paulo Freire se autodenominava um “menino conectivo”. Em várias obras escreve sobre a sua infância; não de forma nostálgica, mas em constante movimento de
reflexão sobre o que foi vivido. Nas palavras do educador, como um “ato necessário de curiosidade” (FREIRE, 2003a, pág. 38) para compreender o “menino de ontem” e a
atividade educativa, política do “homem de hoje”.

Nestas incursões pela infância, compreende-se um menino em conjunção, em conexão entre distintas classes sociais. Nascido no Recife em uma família de classe média, que sofreu os impactos da crise econômica de 1929, viu-se obrigado a mudar-se para Jaboatão. Mudança que proporcionou um contato maior e mais intenso com as crianças das classes populares e, ainda menino, a compreender que o mundo teria que ser mudado.

Ele e o irmão eram “meninos conectivos”, participando do “mundo dos que comiam”, mesmo que comessem pouco e do “mundo dos que não comiam”, mesmo que comessem mais do que eles: meninos e meninas dos córregos, dos mocambos, dos morros (FREIRE, 2003a, p. 45). A conectividade era o elo que ligava estas duas realidades, vividas, segundo Freire, de forma intensa:

Nela se interpenetravam dois mundos que vivíamos intensamente. O mundo do brinquedo em que, meninos, jogávamos futebol, nadávamos em rio, empinávamos papagaio e o mundo em que, enquanto meninos, éramos, porém, homens antecipados, às voltas com a nossa fome e a fome dos nossos. […] No fundo vivíamos, como já salientei, uma radical ambiguidade: éramos meninos antecipados em gente grande. A nossa meninice ficava espremida entre o brinquedo e o “trabalho”, entre a liberdade e a necessidade. (FREIRE, 2003a, p. 43-44)

Mas, se a infância fez de Freire um menino conectivo, fez também dele um adulto em profunda conexão com a infância. Para Mafra (2020, p. 50-51) a autorreferência “menino conectivo” refere-se a um “encontro da conectividade consciente do adulto com a liberdade do menino. […] Nesse entendimento, Freire se traduz como um ser de ligação, na racionalidade do adulto, e de abertura, na ingenuidade e na inconclusão do menino”. O fio condutor é a própria liberdade do menino, que se reafirma no adulto em libertação.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Paulo Freire, educar para transformar: fotobiografia. São Paulo: Mercado Cultural, 2005.

Nessa perspectiva, observamos em Freire uma infância que não se restringe a uma etapa cronológica do desenvolvimento humano, mas a uma condição da própria existência humana. Aqui nos aproximamos do conceito de infância defendido por Agambem (2005), em que a ausência de voz, en-fant, não significa uma falta, e sim uma condição, visto ser na infância que nos constituímos como sujeitos na e pela linguagem. Para esse filósofo, só há história porque há infância; isso porque, como não-falantes vamos nos construindo como falantes e, como falantes, continuamos, permanentemente, infantes, aprendendo a falar e a ser falados. Essa é uma condição para que possamos continuar a viver, transformando, no cotidiano, a língua em discurso capaz de nos colocar na situação de criadores de cultura (SANTOS NETO; SILVA, 2006).

A infância, desde essa compreensão, nos remete à nossa condição de seres inacabados, portanto, em permanente processo de “ser mais” (FREIRE, 2003b), o que nos coloca curiosa e criativamente no mundo como sujeitos de intervenção, sendo ela essa potência que nos constitui como seres curiosos, inquietos, criativos, capazes de pensar um outro mundo, de construir uma outra história. Uma infância que nos acompanha por toda a vida, a despeito da idade. Freire assim viveu a infância: “Eu acho que uma das coisas melhores que eu tenho feito na minha vida, melhor do que os livros que eu escrevi, foi não deixar morrer o menino que eu não pude ser e o menino que eu fui, em mim. (FREIRE, 2001a, p. 101).

Manter viva em nós a infância, “meninar-se”, é não deixar morrer o “menino” ou a “menina” que fomos. É mantermo-nos em um movimento de eternos aprendizes, abertos ao mundo, em comunhão com nossa inquietação, com nossa curiosidade, com nossos sonhos, nossa imaginação, nossas utopias. É (re) encantarmo-nos com a própria vida.

[…] sexagenário, tenho sete anos; sexagenário, eu tenho quinze anos; sexagenário, amo a onda do mar, adoro ver a neve caindo, parece até alienação. Algum companheiro meu de esquerda já estará dizendo: Paulo está irremediavelmente perdido. E eu diria a meu hipotético companheiro de esquerda: Eu estou achado, precisamente porque me perco olhando a neve cair. Sexagenário, eu tenho 25 anos. Sexagenário, eu amo novamente e começo a criar uma vida de novo. (FREIRE, 2001a, p. 101)

Eis a infância em Freire, uma “força revolucionária”, potência criativa da vida em qualquer idade (KOHAN, 2020), caracterizada pela curiosidade, pela inquietação, pelo gosto de perguntar e perguntar-se (FREIRE; FAUNDEZ, 2017). Uma força que inquieta e transforma. Uma força que nos convida, como educadores e educadoras, a nos “meninar” e com ela nos conectar com as crianças.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Paulo Freire, educar para transformar: fotobiografia. São Paulo: Mercado Cultural, 2005.

Paulo, as crianças e as “conversas maravilhosas”
Há momentos em que penso que não sou o avô, que eu sou um camarada qualquer dele, com quem ele conversa com total abertura. E às vezes me chama até “Paulo”, só, e não “vovô”. Quase sempre me chama de “Paulo” e tem umas conversas maravilhosas! (FREIRE; GUIMARÃES, 2008, p. 71)

Encantarmo-nos com a poética das crianças solicita de nós mantermos viva a nossa infância. É o que observarmos em Freire em suas “conversas maravilhosas” com os netos e netas. Conversas que testemunham o seu respeito às crianças e às suas leituras de mundo. O seu encantamento com a forma com que eles e elas se relacionavam com o avô, o “Pedro Bó”, apelido atribuído pela neta Carolina: “Ela joga comigo, ela brinca comigo. Eu sou, às vezes, brinquedo dela, o que é uma beleza para mim. Eu acho uma delícia!” (FREIRE; GUIMARÃES, 2008, p. 70); ou o “Paulo”, como era por vezes chamado pelo neto Alexandre.

Brincar com as crianças, conversar com elas com total abertura, demonstra a compreensão de Freire do direito que meninos e meninas têm de dizerem a sua palavra e o quanto esta é carregada de conhecimento. Isso é evidenciado no diálogo com seu neto Alexandre, cinco anos, em que conversam sobre a lua e os foguetes utilizados para se chegar até ela:

[…] “agora, eu acho que a gasolina desse foguete é muito forte! […] muitíssimo mais forte do que a gasolina do avião, porque senão não dá para furar isso tudo e ir embora”.

Você veja aí como esse menino está colocando, aos cinco anos de idade, o problema da atração da terra, da gravidade, o problema da velocidade. Tudo está posto aí dentro. Aí eu disse: “Exato, meu filho, tem que ser uma gasolina bem potente!”. E ele: “[…] se esses caras errarem a dose e botarem gasolina mais forte ainda, o que vai acontecer é que o foguete passa direto…”. Você veja, novamente o problema da gravidade: ele ultrapassaria a gravidade da lua. “Passa direto, fura o céu” – aí parou e disse: “e aí se perde!”. (FREIRE; GUIMARÃES, 2008, p. 73)

O reconhecimento da criança como um ser potente, com direito à voz e à participação se faz presente ao longo da obra de Freire. Já em 1959, em Educação e Atualidade Brasileira (FREIRE, 2001b), esse educador denuncia as relações autoritárias e antidialógicas as quais as crianças estão submetidas nas famílias e nas escolas. Em Pedagogia do Oprimido, ao discutir a “invasão cultural”, discorre sobre esta forma de dominação que intenta subjugar meninos e meninas, adaptando-os “aos preceitos verticalmente estabelecidos. E um destes preceitos é não pensar” (FREIRE, 2003b, p. 152). Percorrendo seu trabalho, novas denúncias ao silenciamento imposto às crianças:

Creio que, na tenra idade, começamos a negação autoritária da curiosidade […] a repressão à pergunta é uma dimensão apenas da repressão maior – a repressão ao ser inteiro, à sua expressividade em suas relações no mundo
e com o mundo.

O que se pretende autoritariamente com o silêncio imposto, em nome da ordem, é exatamente afogar nele a indagação.
(FREIRE; FAUNDEZ, 2017, p. 68-69)

Na dialética denúncia-anúncio, Freire anuncia a necessidade de se escutar as crianças, de considerar suas vozes nas decisões que envolvem sua vida, seja no âmbito familiar, escolar, ou na comunidade como um todo, na perspectiva da construção de uma sociedade mais democrática, mais justa, mais humana. Para esse educador a luta pela democracia é política e pedagógica (FREIRE, 2003a).

A criança compreendida em Freire é curiosa, perguntadeira. Daí sua proposta de que as instituições de educação infantil se transformem em “[…] centros de criatividade, em que se ensine e se aprenda com alegria” (FREIRE, 2000, p. 33); espaços democráticos, dialógicos, participativos; que partam das experiências concretas das crianças e que estimulem a pergunta, reconhecendo que não há transformação que não passe pela pergunta e, consequentemente, pelo risco. Perguntar é aventurar-se, é correr riscos. Sem riscos não há invenção, criação, encantamento, apenas pura reprodução. A pedagogia dialógica de Freire é uma pedagogia que se arrisca, que ousa perguntar e aventurar-se. Uma pedagogia que se aventura não só com os jovens e adultos, mas também com as crianças e com elas se surpreende e se encanta.

O “Bambino Permanente”
No diálogo com Paulo Freire nos deparamos com a potência da infância: a nossa e a das crianças. Uma infância que transgride o tempo cronológico e nos apresenta uma outra relação com o tempo; um tempo de presença, de intensidade e, sobretudo, de profunda comunhão com a vida. Infância que atravessa nossa relação com outras infâncias, a das crianças, reconhecendo-as em sua alteridade e com elas aprendendo.

Manter viva a nossa infância é a possibilidade de superarmos dicotomias e, assim, nos constituirmos em nossa inteireza, sempre inacabada, como seres sérios e leves, rigorosos e peraltas, dependentes e independentes; é a possibilidade de fazermos despropósitos. Esta infância é presente em Freire e marca sua relação com a vida. Uma vida educadoramente infantil.

Convegno “Chi sono dunque io? Ditemi questo prima di tutto (Alice) – Saperi a confronto per garantire cittadinanza ai diritti e alle potenzialità dei bambini e degli adulti”, Teatro Municipale di Reggio Emilia, 1990. Da sinistra, alcuni dei relatori: Luciano Corradini, David Hawkins, Loris Malaguzzi, Paulo Freire, Andrea Canevaro, Mario Lodi. Disponível:https://www.reggiochildren.it/reggio-emilia-approach/loris-malaguzzi/

El niño conectivo, que escribía libros traducidos en muchos países, que vagaba por el mundo defendiendo la educación como práctica de la libertad, que dialogaba con muchos, pero, sobre todo, que no dejaba morir al niño que era y que no era, recibía en 31 de marzo de 1990, de la Biblioteca Comunale de Ponsacco, en la provincia de Pisa, Italia, el título de “Bambino permanente”. Un niño eterno que, amando la vida y las personas, supo comprender y respetar la poética de los niños y niñas, y, con amor, dialogar con ellos y ellas, como bien sabía su amigo Loris Malaguzzi.

Buen amigo Malaguzzi,
Niño eterno, pídeme, antes de regresar a Brasil, que escriba unas palabras dedicadas a los niños y niñas italianos.

No sé si podría decir algo nuevo a tal solicitud. ¿Qué podría decirles todavía a los niños y niñas de fin de siglo?

Lo primero que puedo decir a la luz de mi larga experiencia en este mundo es que siempre debemos hacerlo más hermoso. Y en base a mi experiencia, lo repito, no dejemos que mueran las voces de los niños y niñas en crecimiento.

Paulo Freire, abril de 1990
(HOYUELOS P., 2004)

Marta Regina Paulo da Silva

Referencias
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
FREIRE, Paulo. Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis. 2. ed. rev. São Paulo: Paz e Terra, 2003a.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 35. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003b.
FREIRE, Paulo. Pedagogia dos Sonhos Possíveis. São Paulo: UNESP, 2001a.
FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. São Paulo: Cortez/IPF, 2001b.
FREIRE, Paulo. A Educação na Cidade. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2000.
FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. Sobre a Educação: lições de casa. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antônio. Por uma pedagogia da pergunta. 8. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.
HOYUELLOS PLANILLO, Alfredo. Loris Malaguzzi: biografia pedagogica. Bergamo: Edizione Junior, 2004.
KOHAN, Walter O. Paulo Freire e a (sua) infância educadora. In SILVA, Marta R. P. da; MAFRA, Jason F. (org.). Paulo Freire e a educação das crianças. São Paulo: BT Acadêmica, 2020, p. 83-100.
LACERDA, Nathercia. A casa e o mundo lá fora: cartas de Paulo Freire para Nathercinha. Rio de Janeiro, Brasil, Zit, 2016.
MAFRA, Jason F. O menino conectivo: a infância como ontologia do ser social em Paulo Freire. In: SILVA, Marta R. P.; MAFRA, Jason F. (org.). Paulo Freire e a educação das crianças. São Paulo, Brasil: BT Acadêmica, 2020, p. 29-56.
SANTOS NETO, Elydio. dos; SILVA, Marta R. P. da. Infância e inacabamento: um encontro entre Paulo Freire e Giorgio Agamben, 2006, p. 1-13. Disponível em https://egov.ufsc.br/portal/conteudo/inf%C3%A2ncia-e-inacabamento-um-encontro-entre-paulo-freire-e-giorgio-agamben. Acesso em: 13 jun. 2020.

Notas
1. Vivienda precaria e incómoda
2. “Meninar” aquí tiene el sentido de guardar en nosotros la curiosidad, la inquietud, los sueños y nuestra apertura al mundo.

 

 

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