Cultura e expressão. Os desafios da descolonização na implementação do CECI

Resumen
Este artigo relata a experiência de implementação do Centro de Educação e Cultura Indígena, entre os anos de 2003 e 2004, no Território indígena Tenondé Porã, localizado na região de Parelheiros (extremo sul da cidade de São Paulo), com foco no atendimento às crianças de até 05 anos de idade, do povo Guarani Mbyá.

Relatar a respeito da experiência que vivenciamos como educadoras que tiveram a oportunidade de acompanhar a implementação do CECI, desde sua origem, mais do que um privilégio, configura-se para nós em um resgate de boas memórias afetivas, profundamente transformadoras sobre nosso papel como educadoras de Infância na cidade de São Paulo.

No período de 2001 a 2004 vivemos a experiência de um governo municipal progressista com grandes possibilidades de se implementar políticas públicas reconhecendo as diferenças sociais e econômicas que permeiam essa grande metrópole, bem como a potência das diversidades culturais, sobretudo no que diz respeito aos povos indígenas.

Com essa possibilidade, as lideranças indígenas Guarani Mbyá da capital paulistana, representando as aldeias localizadas na região do pico do Jaraguá (zona oeste) e Parelheiros (extremo sul) apresentaram aos representantes desse governo municipal uma solicitação de construção de um centro cultural, posteriormente acrescido da ideia de construção de um CEII – Centro de Educação Infantil Indígena, de forma integrada. Até aquele momento as aldeias contavam apenas com escolas estaduais para atendimento às crianças e adolescentes em idade de Ensino Fundamental.

Ao viver essa experiência compreendemos um pouco da complexidade e originalidade desse projeto, considerando como princípio fundamental o respeito à cultura Guarani

Considerando o tema da edição dessa revista, buscamos inicialmente relatar como se deu o processo de elaboração do projeto arquitetônico do CECI proposto pelas lideranças guarani das aldeias de São Paulo. Descrever esses espaços é fundamentalmente falar da cultura guarani, suas sabedorias e crenças, a conexão com a natureza e seu respeito, como aquilo que os guia. Arriscamos aqui a dizer que as arquiteturas dos espaços são iluminadas, inspirados e determinados conforme a localização da casa de reza. Não é possível falar de portas e janelas e paredes, quadradas ou circulares, pisos de pedras ou chão de terra sem compreender o que realmente importa na concepção cultural desses povos milenares.

O CECI e idealizado inicialmente como um espaço de interculturalidade, conquista política do povo Guarani que visava o fortalecimento da cultura, portanto, sua arquitetura deveria representar esse princípio. Os primeiros “rabiscos” do projeto foram feitos pelas lideranças guarani, em parceria com os engenheiros da prefeitura de São Paulo, no chão desse território.

O CECI foi pensado originalmente considerando seus dois espaços fundamentais: o Centro cultural, em formato circular, e o CEII, composto por salas, área administrativa, almoxarifado, cozinha, mezanino, terraço e refeitório aberto. Na construção foram considerados aspectos importantes da cultura, como: a utilização de toras de madeira, para a estrutura, os grafismos nas paredes e o telhado de sape, similar ao utilizado na construção da casa de reza.

Salientamos que, no projeto original, não havia portas ou portões, pois a cultura e a educação Guarani estão intrinsicamente ligadas ao modo de ser e viver Guarani, ou seja, ao“nhandereko”1.

Por fim, após um longo processo de diálogo, em setembro de 2004 foram inaugurados no extremo sul da cidade de São Paulo, os Centros de Educação e Cultura Indígena.

Apostar na articulação concebida pela representatividade do poder público e os donos/as dessas terras foi um grandioso investimento naquilo que contribuiu sobremaneira na formação de todas as pessoas que participaram do projeto.

Os Guarani pelos Guarani
A escuta atenta e intencionalmente planejada para conhecer os indígenas foi primordial para sustentar uma proposta participativa que elegeu como metodologia a vivência na aldeia juntamente com os homens, mulheres, crianças, cachimbos, fumaças, cachorros, gatos, o artesanato, urubus, o pequeno espaço territorial e a escassez de condições ambientais para se viver o nhandereko1 na tekoa 2.

Ouvir dos próprios Guarani as histórias que contam sobre seus ancestrais, suas origens, viagens nesse território, quem são, como vivem, como querem ser tratados e principalmente como é a educação das crianças pequenas e como ela se dá na cultura guarani, foi o aspecto mais relevante na construção das práticas que seriam realizadas.

“…o caso da escola. Para os rezadores3 só existe o saber tradicional. Agora na escola do Juruá, tem que seguir as regras. Escrever. Então, está havendo uma movimentação da escola para tentar seguir a tradição, queremos contar com a professora que ensine na nossa língua. “Rosano Karai Jekupé . (Liderança, Aldeia Tenondé Porã)

Dessa forma subsídios técnicos foram processualmente desconstruídos e substituídos pelo conhecimento indígena, contribuindo assim para que de fato não fosse implementada uma política padronizada e escolarizante a partir do CECI.

Cabe ressaltar que a todo momento precisávamos reconhecer que nosso modo de pensar a escola se distanciava do respeito a cultura indígena, consideravelmente tínhamos apenas boas intenções. A todo momento nos deparávamos com questões que extrapolavam nosso entendimento inicial. A questão da terra, por exemplo, configura-se como fator central para o modo de ser e de viver Guarani, ou seja, o “Nhandereko”:

…“Quase todos estão cientes de que precisamos nos manifestar para fortalecer nossa cultura, a nossa maneira tradicional de viver e também fazer o resgate de coisas que já se perderam. Quando a ampliação de nossas terras for executada teremos outros meios de trabalhar com esta questão. “ Jerá Poty Miri (Liderança, Aldeia Kalypety)

A época o objetivo do CECI não era universalizar no município de São Paulo a Educação Infantil alcançando também os territórios indígenas, mas para além de atender uma demanda apresentada pelos indígenas em relação aos impactos ambientais e a presença da Escola nas aldeias, o projeto CECI está intrinsicamente relacionado com uma educação que se contrapõe ao silenciamento dos sujeitos que por hora determina sua invisibilidade na sociedade.

“Agora o que nos trouxe uma luz, um ânimo, foi a construção do CECI, Centro de Educação e Cultura Guarani, ela nos deu novamente a expectativa, a esperança de que a partir dela as coisas comecem a se ajeitar. “ Jerá Poty Miri (Liderança feminina, aldeia Kalypety)

O CECI ilustra concretamente uma história própria que dialoga com os desejos e necessidades do povo guarani, que demonstra mais uma vez a característica de um povo que luta e resiste ao desmonte de sua cultura como é até os dias de hoje, surge na história do povo como elemento de resistência e esperança, como instrumento a colaborar na superação das dificuldades e problemas que coexistem desde a colonização.

Quem são os bebês e crianças indígena guarani? Quais são suas formas de viver no espaço coletivo da aldeia?

A construção de respostas a essas e outras perguntas só foram possíveis de conhecer e conceber com a vivência naquele território que nós também só conhecíamos como visitantes ou na pior das hipóteses pelos livros escritos por “juruás”.4

De início logo percebemos que nossas fontes seriam os adultos, homens e mulheres de variadas idades, mas sobretudo a riqueza da sabedoria dos mais velhos e velhas.

Onde estavam os bebês e as crianças? Estavam livres a brincar, ora acompanhadas por seus parentes, ora os acompanhando nas reuniões e ou atividades da aldeia. Os bebês pequenininhos sempre no colo, envolvidos no calor dos seios da mãe.

Nosso grande desafio foi tentar banir as adequações, pois não se tratava de adaptar o que já não consideramos bom para os bebês e crianças não-indígenas. Não foi um trabalho fácil, tranquilo, mas sim passível de muitas transformações.

A experiência da interculturalidade nos fez refletir, mais criticamente, a respeito das nossas escolas de Infância não-indígenas, que ainda preveem horários definidos, muitas vezes receiam sobre a aproximação das famílias e apartam aspectos indissociáveis, como educar e cuidar. Viver a implementação dos CECIs nas aldeias nos possibilitou a experiência da “inteireza”, como diria mestre Paulo Freire, de vivenciar a implementação de uma escola sem muros, em que comunidade e crianças de diferentes idades encontram-se em permanente integração, vivenciando experiências plenas de sentido para adultos, crianças e bebês. Nos impulsionando a sonhar com o que desejamos para nossas escolas não-indígenas.

Compromissadas com a educação emancipatória e descolonizadora caminhamos com a escuta atenta aos saberes daquele povo inspirados juntamente pelas crianças.

“… os mais velhos, as mais velhas nos guiam. Mas, são mesmo as crianças a nossa inspiração principal. Elas mostram para nossa alma os nossos caminhos. “
Rosano Karaí D’Jekupé
(Liderança indígena, Aldeia Tenondé Porã)

Até os cinco anos de idade, as crianças só falam em guarani, sendo a língua uns dos principais fatores de resistência cultural, sendo assim de início já nos foi imposto que os/as professores/as teriam que ser da própria aldeia, pois os pequenos sentem muita dificuldade ao entrar no ensino fundamental com os/as educadores/as “juruás” que não falam e não compreendem o guarani. Chegam inclusive a desistir da escola. Então foram contratados monitores/as indígenas para o atendimento.

Inicialmente os Caciques exerceram a função de coordenador pedagógico, como lideranças importantes em relação à valorização da cultura tradicional, do conhecimento ancestral e também dos danos causados ao longo do processo de colonização; fatores esses vistos como fundamentais e permanentes na luta e resistência dos povos originários.

Observamos que o “currículo” da escola indígena não era, portanto, apartado da vida na aldeia. Os horários, assim como o calendário, respeitavam os ritmos da natureza.

Para o povo Guarani, o batismo da erva mate no mês de agosto representa o início do ano. A partir daí os outros momentos são pensados considerando também os ciclos naturais: momentos de plantio, de colheita e outros similares.

Em reuniões com a comunidade, algumas lideranças nos questionavam sobre “Como iria ser (essa escola de 0 a 05 anos), se os/as bebês pequenos/as não se separam da mãe? E para atender a tal demanda foi necessário adequar, por exemplo, o quantitativo de refeições, que deveria atender não apenas “a mãe que não se separa” como os/as irmãos/ãs.

Recordamo-nos de uma discussão a respeito do consumo de salsicha, no momento da apresentação do cardápio “juruá”. As lideranças nos diziam que “Criança Guarani não come salsicha! “. Foi também um desafio para a Secretaria Municipal de Educação, e para nós enfrentar a burocracia para atender a demanda da comunidade. Alguns anos depois observamos que a salsicha também deixa de compor o cardápio das escolas não-indígenas. Ou seja, aquilo que já era sinalizado muitos anos antes como bom para as crianças indígenas, é visto também como bom, ainda que tardiamente, para as não-indígenas.

Senhor Pedro Vicente, um velho sábio da aldeia, por muitas vezes se irritava com a nossa preocupação escolarizante de definir as atividades que comporiam o cotidiano do CECI, os planos e planejamentos, as atividades!

“Atividade! Atividade! Não entende isso que vocês fala…
Atividade? É jajapo 5!
Monitor fala em português com as mães! Não pode!” (Pedro Vicente – Xeramoi tekoa Tenondé Porã)

A cestaria, as reuniões diárias na casa de oração, as danças, as caçadas, as sementeiras, as colheitas, as fogueiras, a cozinha, as curas, as doenças não ocorriam em salas de quatro paredes, com horários determinados. A vida na aldeia era a escola e a escola tinha vida!

O que levamos como aprendizado para as escolas “juruá”? O que foi “descoberto novamente?”
A experiência da interculturalidade nos provoca a perceber que muito do que almejamos, a respeito de uma infância mais livre, vivenciamos nas aldeias. A ideia que temos de “atividade significativa” é profundamente revisitada a partir do olhar guarani:

“Muitas das nossas formas de ensinar, às vezes é considerado pelos professores, e não professores também, digamos que não é muito pedagógico, difícil duma escola não-indígena você ver uma criança, por exemplo, subindo numa árvore sem que chegue alguém e repreenda, agora aqui a gente se vê a criança subindo numa árvore a gente fala ‘oh, cuidado aí que você vai cair! ‘, só isso! ‘ (Conversa com Adriano)

Reaprendemos muito sobre não privar as crianças das experiências, sobre repensar tempos e espaços, sobre a importância de respeitar seus ritmos naturais, sobre a necessidade de integrar seus familiares, sobre a relação com a natureza e também sobre generosidade e vida coletiva:

“Na cultura indígena tem uns pontos muito diferentes da sociedade de ‘juruá’, uma delas que eu acho que faz toda a diferença para a vida coletiva e nas comunidades é que quando a gente tem um bebezinho, criança mesmo, a gente os incentiva a serem generosos desde pequenos, a gente pede as coisas para eles (…) porque é um ritual de iniciação para ser generoso” (Conversa com Jerá, Liderança Feminina, em outubro de 2018)

A garantia da educação diferenciada e intercultural só foi possível através da participação efetiva da comunidade indígena na elaboração e gestão do CECI, o que nos possibilitou conhecer seu modo de vida, cultura e lutas.

Ao longo dos anos, observamos que o CECI passou por mudanças, assim com a comunidade guarani. A luta pelo direito a terra e a resistência pelo direito à cultura, permanecem como marcas permanentes desse povo.

Nesse sentido, destacamos que o entendimento “juruá” a respeito da tecnologia, necessita também ser repensado. Pois passamos a compreender que o artesanato, a culinária, o plantio, e outras atividades próprias da cultura, são também tecnologias:

“Nós indígenas temos que mostrar o que realmente também a gente é hoje (…) muitas pessoas, muito pessoal que vem aqui de São Paulo, mesmo fora de São Paulo já tem essa visão mesmo que o índio que usa roupa não é mais índio, que tem acesso à internet, que usa celular deixou de ser índio, o que a gente sempre fala quando vem o pessoal, acho que é importante, mesmo a cultura do não-indígena, foi modificada, foi mudando, e a mesma coisa aconteceu com o indígena, principalmente os Guarani aqui de São Paulo, porque tá muito próximo da cidade e cada vez mais a cidade vem se aproximando da aldeia, (conversa com Adriano, coordenador do CECI Tenondé Porã em Outubro de 2018)

A proximidade com a cidade, nesse sentido, configura-se como mais um desafio à comunidade guarani, na manutenção de suas lutas e conquistas.

Atualmente a comunidade indígena, através de suas lideranças, na sua maioria mulheres, está buscando a retomada dos princípios originais do CECI que trazia em seu bojo o fortalecimento do Nhandereko. Ao longo dos anos foi sendo burocratizado, dificultando a participação dos mais velhos, a autonomia nas decisões e a liberdade para viver o modo tradicional. Resistir à colonização dos espaços e tempos é marca desse povo, há séculos e séculos, e com o CECI não está sendo diferente!

Cristiane Carvalhais Regis
Pedagoga, especialista em Histórias e culturas afro-brasileiras e indígenas para a educação, coordenadora pedagógica na rede pública de Educação Infantil de São Paulo.

Luci Aparecida Guidio Godinho
Pedagoga, especialista em Histórias e culturas afro-brasileiras e indígenas para a educação, membro gestor do FPEI-Fórum Paulista de Educação Infantil.

Notas:
1. Nhandereko: os modos de ser e viver indígena
2. Tekoa : a própria aldeia indígena
3. Orações: são pessoas que possuem ligação com a ancestralidade e também conhecimento sobre remédios para a cura da alma e do corpo físico. Por isso rezam pela cura das doenças. Eles nunca ignoram médicos e remédios não indígenas, pois dizem que não sabem de tudo e quando necessário os encaminham para o hospital. Rezaram para que o CECI exercesse, pois segundo eles foi autorizado por sua ancestralidade.
4. Juruá: não indígena
5. Jajapo: Fazer acontecer

Referências Bibliográficas:
• BERGAMASCHI, Maria Aparecida e GOMES, Luana Barth. A Temática Indígena na Escola: ensaios de educação intercultural. Currículo sem Fronteiras, v. 12, p. 53-69, 2012.
• BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ. [online]. 2002, n.19, pp.20-28.
• FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
• SANTOS, Solange E.; SANTIAGO, Flavio; FARIA, Ana Lúcia Goulart de. Manifesto (des)educado: profanações pós-coloniais. Textura – ULBRA , v. 18, p. 191-205, 2016.
• STRECK, Danilo R. Qual o Conhecimento que Importa? Desafios para o currículo. Currículo sem Fronteiras, v. 12, p. 08-24, 2012.
• Fotos: Antônio Passaty

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